Laboratório de física aplicada é lugar de
gente séria, palavras contidas e raciocínio cartesiano. O velho professor,
como de costume, trabalhou toda a sexta-feira, no entanto, os colegas de
laboratório sentiram que sua aura irradiava um brilho diferente. Foram se
achegando, e ele, percebendo que os outros liam seus pensamentos e esperavam
sua confissão, capitulou:
- Hoje eu comerei uma musa paradisíaca, coisa
que não faço há exatamente um mês. Estou contando as horas.
Isso despertou todas as conjecturas possíveis
no ambiente de pesquisa. A primeira reação foi de descrença. Afinal ele já
beirava os setenta anos de idade, trabalhava ainda por sacerdócio, ou para
ocupar-se em sua viuvez. Era obstinado em seu trabalho. Nunca se o ouvia
falar de mulheres.
– Com o Viagra, nada
mais é impossível, porém, que é duro de crer, isso é – duvidava um.
– Só acredito vendo com meus olhos! ... Eu
também! – fizeram coro.
– Talvez ele nem saiba mais como é que se faz
tal coisa – completou um terceiro.
- Há a
hipótese viável é que ele use o nariz como instrumento – anuiu um quarto, com
alusão maliciosa aos dotes nasais do professor.
Pelo sim, pelo não, alguém propôs:
- Gente, isso é o acontecimento da década. Afinal,
quem será essa musa? Pode até ser alguém aqui da redondeza. A gente podia segui-lo para descobrir.
- Isso mesmo – apoiaram os presentes.
- Deve ser alguém muito especial, para ele
chamá-la de musa – observou o primeiro.
Os Mais estudiosos se lembraram logo de
Salvador Dali e de Pablo Picasso, que transformaram suas amadas em musas. O
oposto era menos comum: transformar a musa em amada. Mas nada poderia ser
estranho para a mente privilegiada do grande físico, Professor Batistinha.
- Primeiro, a admiração; depois, a conjunção
– filosofou o analista.
- Para ele chamar de paradisíaca, deve ser um
mulherão de fechar comércio e quebrar indústria – veio o comentário de um
segundo.
- Talvez no estilo de Eva, a musa paradisíaca
de Adão, a mãe de toda a humanidade e também de todo o pecado, na visão dos
puritanos, e de todo o desassossego, na visão dos românticos – concluiu um
terceiro.
O fato é que já tinham organizado, aos pés de
orelha, a caravana e os equipamentos necessários, desde os carros; escada
retrátil; câmera fotográfica; visor com infravermelho, para enxergarem mesmo
no escuro, se preciso fosse; amplificador de som, enfim, toda a parafernália
usada para experimentos no laboratório de física. Ao final da tarde, o chefe
da equipe, até então em atividade externa, retornou, e o porta-voz do grupo
cochichou-lhe ao ouvido:
- Professor Batistinha confessou para todos
nós que hoje terá um encontro amoroso com uma garota sensacional.
- Não acredito! – murmurou o chefe. – Ou
melhor, tenho de acreditar, pois ele nunca foi de mentir. O estranho é que
ele é um homem moralista e, ainda por cima, extremamente centrado no
trabalho. Não pensei que tivesse cabeça para outra coisa. E pelo que sei, a
saúde também já não está das melhores. Mas, enfim, se ele se julga capaz de
dar conta da missão, vamos torcer pelo seu sucesso.
- E pelo que deu a entender, ele faz isso
todos os meses – advertiu o interlocutor. – E deve ter bom desempenho, pois
disse que estava contando os minutos.
Falaram sobre a caravana que estava
organizada, e o chefe também não resistiu à tentação.
- Tô
dentro! – garantiu.
Durante os últimos instantes do expediente,
já noite, perceberam que o velho professor Batistinha esfregava as mãos, num
misto de desejo e ansiedade, diante do relógio que cismava em não andar.
Finalmente, o decano despediu-se e todos
repetiram sua frase: - “Até segunda! ”.
Seguiram-no até sua casa, como tinham
planejado, posicionando-se numa fresta de janela lateral, protegidos pelo
escuro da rua. Viram-no tirar as vestimentas, deixando à mostra uma ceroula
de bolinhas. Depois, dobrar e guardar minuciosamente as peças de roupa,
entrar para o banheiro e retornar envolto numa toalha, com ligeiro odor de
alfazema, que perfumou o ambiente. Foi ao quarto e voltou de pijama, trazendo
dois travesseiros que arrumou sobre o sofá. Em seguida colocou Mendelsohn
para tocar uma suave música clássica.
- Não tem ninguém aí – cochichou o especialista
em ótica. – Nosso velho companheiro só pode estar delirando.
- Não, ele nos pareceu bem lúcido e convicto
– resmungou o outro. - E se falou é porque a moça vai aparecer. Vamos esperar
mais um pouco que ela chega.
Nesse momento, o velho colocou todas as
traves nas portas de entrada, sinalizando que não receberia mais ninguém.
Dirigiu-se à cozinha e voltou com uma enorme banana na mão. Deitou-se
confortavelmente no sofá. Nesse instante, todos prenderam a respiração,
imaginando um desfecho andrógino. Mas o professor foi descascando a fruta e comendo-a
em compassadas mordidas, com clara expressão de prazer.
- Pronto! Eis o que ele se planejou o dia todo
para comer: uma banana – ironizou o mais impaciente.
- Ele disse mesmo que teria um encontro
amoroso? – insistiu o chefe da equipe.
- Praticamente isso, com outra frase. Disse
que iria comer uma musa paradisíaca.
- Ora, bolas! – impacientou-se o chefe. – “Musa
paradisíaca” é o nome científico da banana da terra. Vocês não entendem nada
de biologia!
- Então é isso! - custou a aceitar o
outro.
- Mas por que danado ele criou toda essa
expectativa para comer uma simples banana? – quis saber o mais curioso.
- Nosso velho amigo sofre de diabetes –
esclareceu seu chefe - e está proibido pelo médico de comer as frutas de que
mais gosta. A banana é uma delas. Deve ser por isso, coitado, que ele estava
contando os minutos para chegar a casa e fazer sua extravagância mensal.
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Declaro, sob as penas da lei, que
sou auditor (do TCU), escritor (mediano), poeta (medíocre), católico e
ecologista (em ambos, não praticante), compositor musical (licenciado) e
artista plástico (bisonho). Nos últimos 35 anos, extremamente preocupado com os
meus deveres e completamente desatento com os meus direitos.
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