Crédito autoral: Ilustração extraído da página
http://oanunciador.com/tag/nossa-senhora-das-dores/
A VISITA INESPERADA*
Acabo
de chegar do trabalho e de me livrar da roupa suada, quando alguém se anuncia
batendo à porta. Pergunto quem é.
-
É Nossa Senhora das Dores – respondeu.
Penso
não ter entendido direito e repito a pergunta.
-
Nossa Senhora das Dores, já falei – resmunga.
Pensei
inicialmente tratar-se de uma brincadeira, mas a feminilidade da voz, e a
firmeza com que me falou, convenceu-me do contrário. Apenas a impaciência não
combinava com a índole de uma santa.
Por instantes lembrei-me dos sonhos que tive quando
criança em que era visitado por uma das Nossas Senhoras. Não sabia exatamente
qual delas, mas isso não fazia diferença. A cada visita, ela trajava um novo
vestido longo, de cor diferente, mas sempre de seda cintilante. Lembro-me, principalmente,
dos vestidos de cores mais fortes: o vermelho, o verde e o azul.
Vieram
à memória as muitas promessas feitas por minha mãe quando adoecíamos ou íamos
participar de algum evento importante.
Podia
ser que eu ou ela tivéssemos nos esquecido de pagar alguma das tais promessas,
seja interrompendo a sequência das missas combinadas, reduzindo o número de
esmolas a distribuir ou cancelando a visita a algum monumento religioso. Isso
talvez fosse a razão da visita da santa, para me cobrar a dívida assumida e não
cumprida.
-
Só um pouquinho, Nossa Senhora, vou vestir uma roupa mais adequada para
recebê-la e já volto.
-
Tudo bem - respondeu-me ela, agora mais terna.
Enquanto
procurava uma camiseta e trocava o calção por uma bermuda, povoava minha
imaginação o distante Portugal de Dom Sebastião e a ainda mais distante Terra
de Ur, onde Abraão fizera seu pacto com o Deus supremo.
Mas
o que quereria Nossa Senhora com um pobre mortal, desconhecido, que não
liderava sequer sua turma de inglês, muito menos um povo. É verdade que minha avó
paterna me disse certa vez ter feito um pacto com Nossa Senhora para proteção
de todos os seus descendentes. Quiçá, poderia ter sido com Nossa Senhora das
Dores. Quem sabe, a razão de sua vinda seria a renovação do pacto original ou a
discussão de uma nova cláusula a ser inserida no acordo.
Tomado
de indagações e com nova vestimenta, decidi abrir a porta. A primeira imagem
que surgiu me frustrou um pouco. Era uma senhora baixinha e magra, de roupas
simples e de semblante sereno. Não se assemelhava em nada com a imagem que eu
fazia nem com a figura de meus sonhos infantis.
-
Do que se trata? – perguntei.
–
Começou pelo apartamento 101, já passou pelo 102, 201 e 202. Na sequência,
agora é a vez do senhor – falou uma mensagem enigmática.
Nesse
ínterim, numa fração de segundos que se congelou no ar, percebi que ela trazia
nas mãos a estatueta de uma santa. Explicou-me que trabalhava há pouco tempo no
apartamento ao lado e que a patroa lhe pedira para me trazer a imagem.
-
O senhor não viu o aviso do condomínio? – apontou-me a porta do elevador.
Olhei
rapidamente o comunicado, com data de uns três dias atrás.
-
Eu quase não pego elevador – justifiquei-me. - Sempre vou de escada, pela porta
dos fundos.
Dito
isto, li a mensagem. Nela, a síndica anunciava que, por iniciativa de alguns
moradores, no condomínio predominantemente católico, seria feita a novena de
Nossa Senhora das Dores. Cada noite, durante os próximos trinta dias, a imagem
da santa seria deixada em um novo apartamento, a não ser que o morador se
manifestasse em contrário.
-
Afinal é uma novena ou uma trintena? – brinquei.
-
Isso não vem ao caso. Hoje é sua vez de acolher Nossa Senhora das Dores –
disse-me a emissária em tom desafiador. – E então, vai pegar ou largar?
-
Vou pegar – respondi-lhe com o mesmo ímpeto, recebendo com cuidado a imagem da
santa, uma obra de arte capaz de despertar bons sentimentos.
-
Às oito da noite, estaremos todos aqui. Faça apenas café para umas vinte
pessoas, que o bolo e os biscoitos nós traremos.
-
Combinado – concordei tomado por uma energia diferente.
E
assim, às oito horas, recebi muitos condôminos e seus auxiliares, em total
compartilhamento, sem quaisquer distinções. Conhecemo-nos melhor, estreitamos
os laços de convivência e descobrimos interesses comuns. Embora parecesse mera
simbologia, senti que verdadeiramente a santidade celestial habitou meu lar
naquela noite e me criou diariamente, durante todo aquele mês, um agradável
compromisso noturno nos apartamentos dos próximos vizinhos.
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Declaro, sob as penas da lei, que sou auditor (do TCU), escritor (mediano), poeta (medíocre), católico e ecologista (em ambos, não praticante), compositor musical (licenciado) e artista plástico (bisonho). Nos últimos 35 anos, extremamente preocupado com os meus deveres e completamente desatento com os meus direitos.
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