Isso ocorreu no ano de 2008 da graça de
Nosso Senhor e me marcou pela nítida ignorância dos personagens. Após
decidirmos, em família, curtir férias em todo o litoral cearense, incluímos no
roteiro a Praia das Fontes, em Beberibe. E foi nela que se deu o estranho
episódio. A praia é paradisíaca, com belas falésias. Em um dos recantos, jorra
do paredão de argila um jato considerável de água mineral. Ao lado, há uma
grande barraca, que se beneficia do tesouro natural, atraindo clientes.
Garantimos uma mesa naquele recinto e
demos os poucos passos que nos separavam da bica. Aí veio a surpresa: o local
era uma lixeira de grandes proporções, com imundície profunda em três metros de
raio. Com jeito, expliquei ao barraqueiro – um senhor humilde - que seu sucesso
dependeria, em muito, de um ambiente limpo; e que nós queríamos ajudar na
limpeza daquele trecho.
Ele demonstrou boa vontade e nos deu uns
dez sacos de lixo dos grandes. Mas fez questão de frisar que aquela sujeira já
era daquela manhã, pois “limpava todas
as tardes o ambiente”. Arrisco-me a dizer que ali estava o acúmulo
obstinado de vários meses de militância poluidora. Além dos lixos comuns
(garrafas pet, fraldas, copos, sacos, roupas, tênis, etc), desenterramos com
dificuldade um pneu e um guarda-sol, o que pôs por terra a tese de que a
sujeira era daquela manhã.
Trabalhamos mais de uma hora, eu, esposa e
filhos. As pessoas nos olhavam com cara de espanto. A cada lixo que recolhiam,
meus pequenos, então com 7 e 10 anos de idade, repetiam: “Papai, veja a imundície
que jogaram aqui”. O outro mostrava algo e dizia: “Quem joga uma coisa dessas
na praia não é gente; é um porco”. Eu vibrava com o que ouvia, pois sabia que o
discurso deles era educativo e se dirigia aos que nos observavam, sentados em
suas mesas, a cinco metros de distância. Após limparmos cem por cento da área, entregamos
ao barraqueiro os sacos cheios e tivemos deste a garantia de que, mais tarde, “como fazia todos os dias”, levaria a
sujeira para o alto da falésia, onde seria coletada pelos caminhões da limpeza.
Em seguida, tomamos banho e sentamos. Minhas crianças, com instinto precoce de
cidadania, resolveram recolher os inúmeros copos plásticos que estavam no chão
da barraca, embaixo das mesas e cadeiras. Trouxeram-me duas pilhas com uns cinquenta
copos cada. Levei-as até o balcão e pedi ao barraqueiro que as incluísse nos sacos
de lixo. Ele me pediu que deixasse em cima do balcão, pois guardaria em
seguida.
Fiquei observando da mesa, receoso de que
desse outro destino à “mercadoria”. Nesse momento ocorreu o inesperado: o filho
do barraqueiro, um rapazote de uns 14 anos, visivelmente incomodado com nossa
limpeza, apanhou as duas pilhas de copos, correu até a frente da barraca e
arremessou tudo para o alto, provocando uma espécie de revoada de aves de
agouro, que poluiu toda a frente da praia, ante as palmas de alguns bêbados, empolgados
com a cena exótica. Perguntei ao dono: “O senhor viu o que seu filho fez com os
copos que nós recolhemos?”, e ele, com sorriso amarelo, justificou: “Isso é
doidice de criança!”.
Confesso que não tive
mais vontade de voltar àquele bonito lugar, exceto pela curiosidade de ver como
está, alguns anos depois, aquela bica “limpa
diariamente pelo barraqueiro”, com ajuda do seu filho, agora adulto. Por
falar em filho, o meu, com a tarimba dos seus 10 anos de então, opinou à época:
“Papai, talvez os clientes gostem daquela sujeira. A gente pode ter prejudicado
os negócios do homem com nossa limpeza”.
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Declaro, sob as penas da lei, que sou auditor (do TCU),
escritor (mediano), poeta (medíocre), católico e ecologista (em ambos, não
praticante), compositor musical (licenciado) e artista plástico (bisonho). Nos
últimos 35 anos, extremamente preocupado com os meus deveres e completamente
desatento com os meus direitos.
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